como já estabelecemos aqui antes, fazer música é difícil. independentemente então, ufa. sem muito dinheiro, tempo e estrutura, é natural buscarmos nos apoiar, confiar em nossos amigos e espontaneamente construir uma rede de apoio. daí devem ter surgido muitas bandas e selos independentes, e com a pessoa que voa não foi muito diferente.

se você me conheceu na época do sanguessuga, chegou quando tudo isso ainda sangrava. a pqv foi um selo musical que tivemos junto de amigas e amigos entre 2017 e 2018. nesse curto intervalo de tempo lançamos e produzimos diversos discos importantes na cena independente paulista, além de organizarmos shows, turnês e até um festival.
veja bem, no rio de janeiro teve a bichano records, em minas havia a geração perdida, em recife a transtorninho, mas não parecia existir nada voltado ao nosso nicho aqui em são paulo — nada ao nosso alcance pelo menos. nossa vontade era movimentar, produzir e gerenciar nossas próprias coisas, um ajudando o outro aonde podia. tínhamos uma certa experiência já, mas pra quem nos via surgindo das margens da cena éramos um grupo de irresponsáveis com outro selo de música lo-fi, para o desprezo dos nossos colegas no facebook: “porra, realmente precisamos de mais gente fazendo a mesma coisa que todo mundo faz?”, bradavam no grupo da sinewave.

já não bastava essa recepção calorosa, ainda escorregamos no primeiríssimo dia: naquela euforia toda de provar alguma coisa nos enviaram um ep de uma artista. esses arquivos estavam rodando pelo grupo do rock triste no telegram — assunto pra outro dia — todos nós ouvimos e decidimos entrar em contato pra ver se ela tinha interesse de lançar aquilo. com todo meu tato social, não reparei a problemática: como que aquilo tinha chegado na gente? e como a gente vai falar com alguém sem a pessoa sequer imaginar que tivemos acesso? a repercussão daquele dia foi justíssima.
outra verdade também foi apontada diversas outras vezes: éramos, em grande maioria, homens se apresentando pra um público majoritariamente masculino. mesmo melhorando esse quadro sutilmente com mais mulheres na equipe, não deixamos de reproduzir essa questão.
nosso primeiro lançamento foi uma canção do marchioretto, que tinha 16 anos na época. nos meses que seguiram nos rodeamos de bandas, compositores, produtores e artistas visuais, nossas amigas e amigos, pra fomentar aquilo que sempre aconteceu ao nosso redor. em pouco mais de um mês saíram “moscas volantes” do calvin voichicoski, “coruja” da quasar e “aniquiladorzinho” da eliminadorzinho, por exemplo.

essa cadência culminou em algumas coisas que tenho orgulho até hoje. a primeira foi nossa mixtape colaborativa, diário de bordo vol. 1. a coletânea queria registrar que havia sim uma cena em são paulo, e quem capitaneava isso era a gente. nós falávamos demais em retrospecto, mas alguns anos depois é muito bonito enxergar nela um arquivo do que estávamos fazendo e aonde estávamos como compositores, músicos, artistas e amigos. tudo está impresso nesse projeto: como decidíamos tudo, como colaborávamos, até o jeito que tirávamos sarro das coisas.
a mixtape apontava o norte pro próximo ano: além do novo símbolo e da direção de arte da carolina cavalieri, foi a primeira vez que contratamos um assessor pra divulgar o disco. além da colaboração inerente de uma coletânea e do selo em si, esse projeto também apresentou vários artistas que não tivemos a chance de divulgar antes do fim do selo, mas que eventualmente lançaram ótimos trabalhos, como pelocurto e hektōr.
um mês depois chegou o dia do festival pessoa que voa, outra data que guardo com carinho. até organizávamos alguns eventos, mas não era muito nosso foco, mesmo depois de alguns momentos muito legais (tipo geração perdida naquela turnê sem sair na rolling stone numa luthieria na sena madureira, ou jair naves num show só voz e violão — até hoje um dos mais bonitos que já vi, ou lia kapp na funarte).

não foi a primeira vez que tentamos fazer algo num espaço assim. o primeiro evento da pqv era pra rolar no teatro municipal de jandira, mas a prefeitura peidou no último minuto. foram alguns meses de negociação, documentos assinados e reconhecidos em firma, mas finalmente conseguimos marcar uma data no teatro da funarte, lá nos campos elísios. tivemos de levar tudo, além de cuidar do som e da luz no dia, e não podíamos nem aceitar cartão. no final das contas, tudo deu certo e ainda sobrou dinheiro depois de pagar todo mundo.
uma história desse dia que sempre acho graça é o marchioretto, no show dele com a eliminadorzinho, puxando um mosh pit no meio do teatro. eu, na cabine de som e já lembrando meu nome assinado em todo tipo de papel possível, saí gritando não não NÃO do fundo da sala. pelo amor de deus quanto deve custar uma fileira de banco daquela? a eliott também me contou esses dias de como (completamente bêbados) deixamos a luz tão forte uma hora que parecia que alguma coisa havia explodido assistindo do palco.



são essas as histórias que guardo comigo. mas, além dessas histórias, guardei também uma frustração latente. não posso dizer pelos outros, e receio até soar hiperbólico, mas por um tempo não me imaginei fazendo música de novo, pelo menos não na escala que fazíamos. talvez deveria ter escrito isso antes.
como comentei anteriormente aqui, eu estava escrevendo um texto bem mais sério, uma crônica de como nos conhecemos até o fim. por mais que pareça interessante preservar um documento e contar essa história que até hoje eu não havia dito, nada somaria contar aqui quem fez o quê e por quê. aqui vai minha perspectiva: trabalhar com amigos, e soma-se nisso essa coisa passional que é Fazer, é complicado. cada um tem sua personalidade, e levar todo mundo a um consenso é uma batalha perdida, ainda mais da forma que fazíamos as coisas. uma hora ou outra aquilo ia implodir.

se me permite retornar à tese estabelecida no começo desse texto, todos nós construímos naturalmente redes de apoio pra poder chegar mais longe, juntos. quem irrefletidamente queima pontes uma hora se enxergará ilhado.
hoje, anos distante, o saldo é surpreendentemente positivo. fizemos nossos melhores trabalhos depois da pessoa que voa, pudemos nos profissionalizar ainda mais e continuamos a trabalhar uns com os outros como antes, sem compromisso ou condição. para algumas pessoas, o que fizemos e todo aquele frenesi foi o estopim para que tirassem o próprio projeto do campo das ideias.
então, de tempos em tempos, a pergunta de um milhão é posta a mesa novamente: e se voltássemos? nós nunca paramos. por um tempo ficamos desanimados, sim, mas ainda corremos juntos. naturalmente compartilhamos a vida e a arte que fazemos, por vezes inseparáveis uma da outra na rede que construímos, aos trancos e barrancos. quem sabe um dia arquivamos tudo isso de novo.

postado originalmente no substack, 02/04/2024

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